O ESTARDALHAR DOS SILÊNCIOS
Tudo
começou dentro de um coletivo. Eram precisamente 19 horas de uma quinta-feira.
Estava
a ouvir música com o fone no ouvido, de repente o barulho, vidros no chão.
Corpos?
Ainda
não era possível saber. Causava estranheza a inércia dos outros passageiros,
agiam como se nada tivesse acontecido. Nenhum olhar de espanto, não havia a
curiosidade característica dos transeuntes nesse tipo de situação. Não sabia se
agia com o impulso do momento e levantava para ver ou se manteria a lucidez descuriosa
da qual pensava diferenciá-lo dos outros homens. Pensou que talvez aquele barulho
houvera sido coisa de sua cabeça, teria passado um dia cheio de afazeres e trabalhos,
o cansaço era visível. Escutava uma música de Elis Regina cujo um trecho dizia “o
que em algum tempo era novo e jovem, hoje é antigo e precisamos todos
rejuvenescer”, começou a pensar no que se passava na cabeça dos passageiros. A
maioria, provavelmente, estava voltando do trabalho, à caminho de casa. Por
fim, o ônibus continuou seu trajeto, mas ainda assim o questionamento de nosso
personagem, doravante chamado de L.M., continuou e algumas das dezenas de
pessoas presentes despertaram sua curiosidade.
Havia
um senhor, aparentava ter em torno de setenta anos, um extenso bigode branco
logo abaixo do nariz, muito chamativo. Não havia ninguém ao seu lado e parecia
refletir sobre algo. Ora, dirá o leitor, é isso que a maioria das pessoas fazem
nos coletivos, refletir sobre alguma coisa, o que de fato é verdade. Mas
chamava a atenção seu olhar preocupado e assustado. É praticamente impossível
saber o que se passa na mente do outro, tudo que o leitor verá aqui são suposições,
a liberdade que a literatura nos dá é extraordinária.
Voltemos
ao senhor de bigode, no qual L.M. fitava os olhos. Não parecia ter ouvido o barulho
do suposto acidente, a essa altura o leitor já deve estar se perguntando se de
fato houve algum acidente, seu olhar era como o de um homem que não conseguiu cumprir
com o dever que se lhe propôs. Nutria certa indiferença com relação ao que se passava
em sua volta, sequer parecia estar ali. “Quando temos muitas preocupações onde estamos
é exatamente onde menos estamos”, pensou L.M.
Havia
na parte traseira um casal, ambos bem afeiçoados, apaixonados, com demonstrações
públicas de beijos despudorados, sem a preocupação do bom senso social, o que
causou certa inveja em nosso protagonista, o levando a pensar nos amores que
teve e dos quais nunca terá. Nossas escolhas nos levam a caminhos diverso,
pensou. O casal não parecia carregar a insustentável leveza do ser, porque
pareciam pessoas livres, felizes e totalmente apaixonados. Mas ser livre tem um
preço, o preço de conviver com o peso de nossas escolhas, a felicidade, mesmo
de apaixonados, não dura para sempre. Isso é o que faz de nós quem somos. Por
isso, inevitavelmente carregam o peso de estarem juntos. Sim! Relacionamentos são
como uma série de contratos, cujo último é o casamento, e mesmo para aqueles
casais ditos de “relacionamento aberto”, não o deixa de ser.
Ainda
na parte traseira havia uma jovem, mais ou menos 19 anos, lia um livro de
Dostoievski,
cujo título é “Crime e castigo”, deixando L.M. encantado com a leveza com que passava
os olhos pelas linhas e páginas que se seguiam, seus gestos despertavam a curiosidade
de qualquer pessoa que não conhecesse a obra. Vez por outra ela parava para respirar
e ficava como que absorvendo o que acabara de ler, até retornar novamente para
o livro. Parecia devorar as palavras com sua fala silenciosa, pois apesar de
ser perceptível seu bater de boca com a leitura, sua voz não era ouvida.
Um
vendedor se aproveitara do momento em que o motorista parou para descer passageiros
numa parada e embarcou pela porta traseira, L.M. observava atento. Vendia de tudo,
até felicidade. É justamente esse tipo de vendedor que consegue agradar a
clientela, sabe fazer o marketing de seu produto.
De
repente, nosso personagem se pega pensando na música de Elis do início desta narrativa
e se deu conta de que as mudanças são necessárias, e o ônibus é um lugar privilegiado
para percebê-las. Fala consigo mesmo: “Assim como, diz o filósofo, a água que passa
no rio nunca será a mesma, as idas e vindas no ônibus sempre há de transformar
o observador mais atento. Sou parecido com cada um dos passageiros, nenhum
tomou a iniciativa de levantar para olhar o suposto acidente esperando que alguém
o fizesse primeiro, todos carregam dores, frustrações, sonhos e ainda assim o
fluxo vai levando-nos para algum lugar.”
Quando
Elis fala que “precisamos todos rejuvenescer”, ela tá pensando além do óbvio e que
devemos começar a aceitar a vida como ela é, sem nos esquivar das mudanças que,
às vezes, são dolorosas, mas necessárias. É o amor fati nietzschiano, o amor ao
destino sem, contudo, nos esquivar de lutar.
Mas
e o acidente?
Deixemos
que o leitor tire suas próprias conclusões.
(Adrianus
Martini)
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